O catador de livros

Ele era só mais um entre tantos numa capital urbana. As vidas transpassando entre passos e descompassos; prazos e atrasos; em meio a percalços e descalços; tratos, maltratos e maus-tratos.

E lá estava ele.

Sucumbindo à dureza da cidade que ergue edifícios que arranham os céus e rebaixa pessoas arrastando-as ao chão. Não era culpa desta cidade, ora pois! Todas têm suas riquezas e pobrezas; suas alegrias e tristezas; suas tolices e suas destrezas; suas bondades e suas maldades; suas mentiras e suas verdades.

Mas nesta, lá estava ele!

Com a roupa do corpo e uma sacola na mão caminhava mesmo sem chão. Não tinha teto, mas a esperança era o seu abrigo. Não tinha rumo e o horizonte era o seu destino. Não tinha pressa, mas o tempo era seu inimigo.

A noite caía, a gente se recolhia, o silêncio ensurdecia.

E lá estava ele.

O sol nascia, a gente surgia, o silêncio findaria.

E lá estava ele.

Todo dia era a novidade que se repetia, a mesmice que persistia, o propósito que se esvaía.

Faminto!

Felizmente numa capital litorânea é difícil um infeliz ser vencido pela fome. As ruas e as lixeiras estão sempre repletas de cocos descartados após serem esvaziados do líquido que para tantos é o único item de interesse. Mas não para ele!

Quebrava-os com a motivação e ânimo de quem abre o melhor dos presentes. Devorava-os com a voracidade de um predador abatendo à sua suculenta presa.

E por ora, saciado estava ele.

Fortuitamente uma ideia surgira nos seus miolos aquecidos pelo sol escaldante: decidira que passaria de porta em porta solicitando doações de livros que não tivessem mais serventia na vida de tais pessoas e secretamente os venderia nos sebos da cidade. Ao planejar, já sonhava e regozijava-se imaginando os benefícios da recompensa monetária que lhe concederia o privilégio momentâneo de por uma noite, pelo menos uma noite, dormir novamente numa cama e sentir o prazer fugaz de um demorado banho de chuveiro. Por uma noite, ao menos uma noite, não se preocuparia em incomodar com o seu odor às pessoas ao se aproximar, nem teria o sono interrompido ao ser enxotado das calçadas pelos vigilantes noturnos.

Na estreia de sua audaciosa empreitada, fez o que habitualmente fazia melhor: caminhou! Caminhara tanto coletando os promissores livros que perdeu-se e percebeu que já era hora de voltar; e que talvez não desse tempo de voltar. E novamente, caminhou. Desta vez em regresso ao centro da cidade antes que o comércio fechasse. Seu ímpeto nos passos eram dignos de um mensageiro de guerra trazendo as boas novas.

Em vão!

O esforço descomunal para receber os livros que coletara nas portas que se abriram, não evitou que se fechassem as portas onde tais seriam entregues.

Frustrado estava ele!

A noite caía, a gente se recolhia, o silêncio ensurdecia e ele seguia... Cabisbaixo, exausto, molhado... Chovia!

O temporal o fez buscar refúgio noturno numa moita que abraçava uma árvore. Era perfeita! O protegia da chuva e o escondia das pessoas. Colocou os livros ao seu lado; escolheu três que pareciam ter final feliz e os usou como travesseiro. Dormiu.

Acordou com uma inesperada surpresa! Percebeu que a escuridão aliada à umidade do seu refúgio "perfeito" também era o lar ideal para caramujos que durante o seu sono dilaceraram seus preciosos livros. Não chorou nem se enfureceu. Surpreendentemente ele riu. Entendeu claramente o significado da máxima "tão trágico que chega a ser cômico."

Retirou-se do esconderijo e retomou a jornada de catador de outrora, mas assegurou-se que desta vez não daria com a cara na porta. Ao apresentar sua mercadoria aos compradores, aprendera uma nova lição: sebos são negócios injustos que beiram a desonestidade. Todo o seu trabalho lhe rendera míseros quarenta reais que lhe daria na melhor das hipóteses uma noite numa pousada barata e um almoço descente no dia seguinte.

A exaustão da labuta empreendida não o impedira de caminhar até a praia mais próxima. Queria sentar um pouco, descansar, observar o mar, esvaziar os pensamentos e quiçá alimentar-se com mais alguns cocos. Seus sapatos se renderam às duras exigências; seus pés os torturavam. Tanto que ao repousá-los sobre a areia gelada sentiu um prazer quase que sexual.

De repente, outra ideia estalara na sua mente: sendo a praia um local público não seria abordado por vigilantes noturnos e então poderia passar a noite lá e economizar seu suado dinheiro.

Andou um pouco até encontrar um lugar aparentemente recluso o suficiente para pernoitar e pegou uma tábua que lhe serviu como escudo contra o vento e a chuva que retornara na madrugada.

De fato, seu sono estava livre dos vigilantes noturnos e dos caramujos, entretanto fora surpreendido por outro habitante do local: um viciado em craque que, pelo disfarce da noite, o confundiu com um dos seus e o deixou em paz. Porém ao amanhecer, reencontraram-se e não teve a mesma sorte de antes. Fora ameaçado com uma faca e seus agora valiosos quarenta reais roubados. Num misto de coragem e ousadia, ainda conseguiu negociar o dinheiro da passagem com o assaltante.

Saiu de lá com a estranha certeza de que a negociação foi mais justa e cordial tal qual com os sebistas.

O sol nascia, a gente surgia, o silêncio findaria e ele? Seguiria!

Talvez o conto de fadas do catador de livros não seja tão romântico nem tão bonito como aqueles que ele carregava. E certamente ele não seria o tipo de protagonista que encontraríamos por lá.

Ele não era um "mocinho", tampouco um herói. Não era alguém encantador; carismático; não lutava por uma causa; não salvara o mundo, não se arriscava por um amor impossível nem ensinava alguém a ser melhor e como vencer na vida.

Provavelmente sua história nunca seria publicada, não seria lida, vendida nem comprada; e até mesmo nem merecesse ser contada.

Simplesmente, ele estava lá!

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